quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Faro e o centro histórico







Texto publicado a 24/Abril/2007 n'A Defesa de Faro

Várias vezes neste blog tem sido referido a falta de atractivos que a cidade de Faro apresenta e que a mantém num imobilismo económico e cultural.
Sendo Faro, além disso, a capital da região mais turística de Portugal, é de certa forma, absurdo que os turistas pouco acorram a visitar a cidade.
Contudo, Faro apresenta um conjunto de mais-valias que ainda torna mais incompreensível esta situação, sendo as principais a proximidade a um aeroporto internacional de grande movimento, a sua localização junto à Ria Formosa, espaço ambiental de espectacular valor paisagístico e um centro histórico que é o maior a nível do Algarve.
Na minha opinião, esta situação acontece porque não houve nem da parte das autoridades nem da população o mínimo de perspicácia, de sensibilidade e de cultura para reconhecer essas mais valias e explorá-las.
Neste artigo vou-me debruçar especificamente sobre o centro histórico e analisar aquilo que não foi feito, aquilo que se fez mal e o que ainda se poderia fazer para regenerar e activar aquela zona da cidade.
Cada vez mais o turismo cultural ganha dimensão e as zonas de forte caracter patrimonial são cada vez mais procuradas.
Uma excelente oportunidade para Faro aproveitar a onda.
Porém, se passearmos pelos vários núcleos do centro histórico da cidade, verificaremos o estado deplorável em que ele se encontra: uma parte dos edifícios está escalavrada e meio em ruínas e a outra parte foi alvo de reabilitações e alterações mal feitas e descaracterizantes. Quantos edifícios restam então, que mantém a sua harmonia e autenticidade? Somente algumas igrejas e meia dúzia de outros edifícios.
Há que fazer contudo uma diferenciação do núcleo histórico: a Cidade Velha e as outras zonas.
Relativamente à Mouraria à Judiaria, frente ribeirinha e zona comercial o cenário é desastroso.
A utilização descontrolada e generalizada de materiais e acessórios dissonantes (alumínio, estores de PVC, tintas plásticas, "azulejos de casa de banho", aparelhos de ar condicionado, reclames luminosos, etc.), e as alterações estruturais e deturpantes das fachadas de alguns edifícios, juntamente com uma série de casas em adiantado estado de ruína criam uma cacafonia de harmonia insuportável.
Um sítio assim não atraia nada, nem pessoas, nem negócios, nem animação, nem cultura.
Hoje em dia, em todas as cidades do mundo, os centros históricos são ímanes de atracção irresistível. Veja-se o caso do Bairro Alto em Lisboa, em que cada vez mais estratos sociais dinâmicos e jovens aí acorrem para procurar habitação, montar negócio ou usufruir da animação diurna e nocturna.
O Bairro Alto está mais vivo que nunca, com lojas das mais conceituadas, centros de animação cultural, bares, cafés, restaurantes de qualidade, galerias de arte e ateliers de moda e design .
Evidentemente que isto só foi possível porque o Bairro Alto soube salvaguardar o seu caracter e autenticidade, condição imprescindível para se ser atractivo.
As zonas históricas de Faro referidas estão evidentemente nos antípodas desta situação.
A tarefa de reabilitar uma zona que chegou a um estado de tão acentuada degradação seria um desafio enorme e eu, sinceramente, no quadro das mentalidades actuais, não vejo qualquer hipótese de isso ser possível.

Resta a Cidade Velha.

Aqui a problemática é de nível diferente mas a situação é igualmente grave.
Eu, aliás, já em tempos escrevi neste blog um artigo sobre aquela zona da cidade (A Cidade Velha e o clone perfeito).
A Cidade Velha está a ser reabilitada sob a orientação de um gabinete técnico. Acontece que as sucessivas intervenções efectuadas têm sido desastrosas, sob o ponto de vista técnico e estético.
Há anos que denuncio a utilização de materiais de construção inadequados nas reabilitações dos edifícios antigos.
Estes materiais, como o cimento e a tinta plástica á cabeça, descaracterizam os edifícios e contribuem para a sua degradação física.
Nos dias 19 e 20 de Abril tive a oportunidade de participar num seminário assim designado "materiais e técnicas de construção tradicional: um património com futuro?". O seminário teve lugar na CCDR em Faro.
Os intervenientes dissertaram em torno de várias situações, todas elas centradas nas tecnologias tradicionais e nas formas correctas de reabilitação de edifícios antigos. E ficou bem claro a partir dos dados e experiências apresentados a total incompatibilidade entre materiais tradicionais e materiais modernos.
Por exemplo, rebocos de cimento sobre alvenaria de taipa causam danos irreversíveis devido à pouca permeabilidade e flexibilidade do cimento. A humidade proveniente do solo e do interior da habitação acumula-se nas paredes e é impedida de sair naturalmente por condensação (devido à impermeabilidade do cimento) criando tensões no revestimento que fissura, verificando-se então facilmente a entrada de água.
Se sob o ponto de vista químico e físico a situação não deixa margens para dúvidas sobre as consequências a longo prazo na estrutura dos edifícios, sob o ponto de vista externo as consequências também são grandes. E revelam-se a nível visual.
O cimento e a sua associada habitual , a tinta plástica abastardam os edifícios criando o pastiche, isto é destroem a sua identidade, criando uma falsidade.
As argamassas, a cal e os pigmentos naturais (revestimentos tradicionais), potenciam, por outro lado, a expressão genuína dos edifícios dignificando a sua beleza e singularidade.
Esta verdade encaixa com particular ênfase na nossa arquitectura, já que a riqueza dos revestimentos no Algarve tradicional são incontáveis: barramentos, esgrafitos, fingidos, marmoreados, escaiolas, platibandas e outros artifícios, pigmentos de cor, etc.
Para além disso, as sucessivas camadas de cal criam ao longo dos anos, uma epiderme modelada e texturada de singular beleza e força expressiva.
A patine do tempo instala-se, fazendo-se parte integrante do edifício, concedendo-lhe um valor e carisma especial .
Há 30 anos atrás todos os edifícios antigos em Faro tinham essas características.
Aliás, o grande referencial de imagem que esteve associado à valorização de Portugal como destino turístico, foi a célebre frase "very tipycal", que estava associado a conceitos como pitoresco e castiço.
Sem grande quantidade de monumentos, de museus ou de acontecimentos culturais, quando comparado com outros países europeus, Portugal afirmou-se principalmente pelo valor do ambiente natural, da sua cultura popular e da arquitectura vernácula que é pitoresca e castiça.
Se subtrairmos esta componente que é intrenseca à nossa arquitectura, estamos a mutilar irremediavelmente a sua essência.
Ora, a forma como os edifícios estão a ser reabilitados na Cidade Velha é um atentado a essa sua essência.
A utilização do cimento e da tinta plástica, alisando, higienizando e asseptizando as fachadas matam o "elan" dos edifícios. Trata-se de uma falsificação grosseira e de um embuste inqualificável.
Por exemplo tenta-se imitar a cal com a tinta plástica. Para lá de terem cores, texturas, brilhos e transparências completamente diferentes, esta é feia e pirosa, desqualificando os edifícios onde está fixada. É uma matéria artificial e como o próprio nome indica é de plástico!
Que compatibilidade pode haver entre materiais naturais e nobres e materiais sintéticos e rascas?
Descobri há algum tempo o impensável. Cidades, vilas e aldeias históricas, como Évora (património da humanidade), Mértola e Monsarraz, por exemplo, também praticam os mesmos processos erróneos de reabilitação.
Exprimi no seminário, no período de debate, a minha estupefacção perante esses factos.
O Arq. José Aguiar respondendo às minhas dúvidas descreveu alguns exemplos lá de fora, nomeadamente na Suécia e na Áustria onde as regras são estritas (em Estocolmo todo o centro histórico é revestido em cal e pigmentos naturais, quem diria)!
Como é obvio, em muitos países Europeus, os centros históricos são intervencionados, desde há muito, com tecnologias de reabilitação 100% tradicionais. E as pessoas que lá vivem têm que aceitar essas regras que são absolutas.
Isto é, não há possibilidade dos moradores decorarem as fachadas das suas casas fora dos parâmetros precisos estipulados, salvaguardando-se desse modo, a unidade e identidade do conjunto (tal e qual como em Portugal!!)
Como sempre o nosso país está muito atrasado nesse campo. Parece que só há um sítio em Portugal onde a reabilitação é feita de forma adequada, que é em Guimarães. Não admira, pois, o estado de graça que essa cidade atravessa com um dinamismo cultural, social, económico e turístico invejáveis. Não foi por acaso que Guimarães foi escolhida para Capital Europeia da Cultura 2012.
Bom, mas voltando à Cidade Velha, último reduto da arquitectura tradicional com alguma dimensão em todo o Algarve, a situação é bem outra , infelizmente.
De facto, quando actualmente já está mais que provada a necessidade de reabilitar com materiais tradicionais, vamos continuar tristemente a assistir a reabilitações deploráveis que vão continuar a reclamar casa após casa.

Quando se adoptar finalmente as medidas já consensuais em quase toda a Europa, se calhar somente daqui a dez anos, já a Cidade Velha terá perdido grande parte da sua áura e densidade histórica e não será mais do que um vulgar pastiche sem valor nem beleza especial.

Fernando Silva Grade